A saúde planetária no pós-Covid-19
- Miguel Dias

- 18 de jan. de 2021
- 4 min de leitura


https://plataforma9.com/publicacoes/chamada-dossie-pandemia-covid-19-e-suas-implicacoes-nas-relacoes-sociais-no-mundo-pos-pandemia.htm
Nesse momento, a sociedade humana está “fora dos trilhos”. Naturalmente, a Covid-19 irá predominar na atenção pública, colocando em “stand by” problemas outrora primários. Mas, como toda pandemia na história humana, irá tornar-se passado, embora não se possa afirmar que será superada, pois está deixando profundas cicatrizes nas gerações atuais, com reflexos que ecoarão por muitas gerações. Em termos de agenda de governança, deixar problemas globais se acumularem não é uma boa estratégia, pois tendem a agravar-se seriamente com o tempo, culminando em colapsos, como a própria Covid-19.
Um dos problemas prioritários é o tamanho da população humana, que continua a crescer rapidamente; estima-se alcançar 9,8 bilhões em 2050. Para suprir a crescente demanda, a produção alimentar deverá ser aumentada em pelo menos 60% e a disponibilidade de água, em 40% (UN, 2015). Entretanto, mais de um terço da superfície terrestre e 75% dos recursos de água doce já estão dedicados à agropecuária (IPBES, 2018). Não é sem razão que cerca de 70% da população global já apresentam algum nível de dificuldade no acesso à água doce, e 66% sofrem com a escassez (Mekonnen; Hoekstra, 2016). Para assegurar a disponibilidade da água deve-se conservar ecossistemas florestais, pois mais de 75% de toda água doce são oriundos de suas bacias hidrográficas (FAO, 2020). Mesmo assim, 3,6 milhões de hectares de florestas são perdidos anualmente, e durante a pandemia, o desmatamento na Amazônia volta a aumentar, 51% em relação a 2019, é o nível mais alto no período desde 2016 (Weisse; Goldman, 2019; Barifouse, 2020).
Já ultrapassamos alguns limites planetários, dois deles por causas intimamente associadas à produção alimentar, que são as emissões ambientais de fósforo e nitrogênio (Sterner et al., 2019). Além desses nutrientes, há o massivo despejo de resíduos de origem animal e vegetal (matéria fecal de criações, vinhoto da cana-de-açúcar) sobre os solos e corpos d’água, eutrofizando e alterando a microbiota. Em conjunto, a excessiva dispersão de agrotóxicos sobre plantas agrícolas (inseticidas, fungicidas), colateralmente atingindo as plantas silvestres em áreas adjacentes, atacando a biodiversidade nativa de insetos, inclusive polinizadores, predadores de pragas e outros importantes prestadores de serviços ecossistêmicos (Foley et al., 2005). Outro limite altamente excedido é o da taxa de extinção de espécies, alimentada pela perda de hábitat e com forte contribuição da produção agrícola e pecuária (SRC, 2015). A biodiversidade tem papel fundamental no provimento de serviços ecossistêmicos, os quais beneficiam a produção alimentar e a saúde (ex.: polinização, ciclagem de água, controle de doenças).
Outra questão primária à saúde é a alteração climática, que atua nas doenças e nas epidemias por diversos mecanismos (Araújo; Naimi, 2020; Baker et al., 2020). Muitas doenças virais são sazonais, pois estão associadas às peculiaridades das estações (umidade no ar, variação de temperatura, frequência de chuvas). Variações desfavoráveis (ar seco, frio) afetam o sistema imunológico dos humanos, e o nível de contato entre humanos, modulando infecções fúngicas, bacterianas e virais, bem como os processos epidêmicos. As mudanças climáticas alteram a expressão dos padrões atmosféricos das estações, podendo deslocar e até aumentar períodos com condições climaticamente favoráveis às infecções. O clima é fator primário aos nichos ecológicos, determinando as áreas das distribuições das espécies. Alterações climáticas degradam a adequabilidade dos hábitats, que em certas situações obrigam as espécies a se dispersarem para novas localidades. O vírus, pela sua condição de parasita obrigatório, se dispersa junto com as espécies, levando e elevando o risco de spillover para novas áreas e para outras espécies.
Um dos maiores desafios da humanidade no futuro é aumentar a produção e distribuição de alimentos e água potável. E outro é frear a perda e fragmentação dos hábitats silvestres em favor da conservação da biodiversidade e dos ecossistemas. No formato de desenvolvimento vigente, o suprimento das demandas nutricionais humanas aparenta antagonizar com os meios para a conservação dos ecossistemas, gerando um paradoxo: “O bem-estar, a saúde e a prosperidade da sociedade humana estariam inexoravelmente atrelados ao incremento da degradação ambiental?” (Raudsepp-Hearne et al., 2010). Nesse quesito, o conceito de Saúde Planetária (Whitmee et al., 2015) aponta para alternativas viáveis, pois a própria viabilidade das alternativas estão sendo consideradas na formulação de soluções. E mais do que encontrar meios para equilibrar a balança entre saúde humana e saúde ambiental, o conceito na prática deverá habilitar a capacidade humana de perceber que essa dualidade ė equivocada. Só há um único aspecto a ser tratado, que é a saúde do planeta, na qual a saúde humana, animal e ambiental é componente intrínseco e indissociável.
Soluções para produção alimentar sustentável já estão ao nosso alcance, e estão alinhadas com uma nova definição de produtividade, em que também se contabilize a qualidade de vida de quem produz, de quem consome e a qualidade do ambiente onde se produz. Certamente será um grande esforço, que envolverá a dedicação de gerações, mas normalmente, mudanças de longo alcance na sociedade humana surgem a partir de grandes impactos, assim a Covid-19 se apresenta como um ensejo e uma oportunidade.
CONCLUSÕES
Pelo fato de epidemias como a Covid-19 estarem associadas à forma que desenvolvemos nossas atividades denota que os humanos têm o poder para modificar tendências, evitando a emergência de eventos futuros. Portanto, ao invés de se desejar “voltar aos trilhos” da antiga trajetória, a sociedade humana poderia desejar e trabalhar para construir um novo caminho, direcionando-se para um modelo sustentável. Até o momento, estivemos focados em ganhos e vantagens imediatas; eventualmente, nossa percepção de presente e de futuro se aprimore após a Covid-19, e passemos a investir nossos esforços pensando em longo prazo, em ter qualidade de vida agora, mas também deixar um melhor legado às futuras gerações. Esse esforço exigirá que as sociedades promovam novos padrões de consumo, novos conceitos de autorrealização, e uma totalmente nova percepção de relação entre humanos, e deles com o ambiente. A aplicação do conceito de saúde planetária viabiliza meios para um novo modelo de desenvolvimento, um em que as tendências mais marcantes sejam impulsionadas por forças da equidade, do equilíbrio e da eficiência, construídas com respeito pela integridade dos sistemas naturais, pela ética no convívio entre pessoas e, sobretudo, com a percepção de que o planeta e todos seus componentes - seres e sistemas - são inexoravelmente interconectados e compartilham destino comum
AGRADECIMENTO
André Luis Acosta agradece o suporte da Fapesp (PF: 2019/12988-7).
Recopilado da rede para os seguidores do CCM, o Canal de Crissiumal.
Print version ISSN 0103-4014On-line version ISSN 1806-9592
Estud. av. vol.34 no.99 São Paulo May/Aug. 2020 Epub July 10, 2020








Comentários